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A (in)violabilidade da correspondência e os direitos humanos

O sistema prisional entre o legal e o ilegal
28/01/2016


Vera Lucia da Silva[1]
Eronildo José da Silva[2]
 
1. INTRODUÇÃO

O ato de produzir cartas dentro de uma prisão nos convida a refletir sobre suas especificidades tanto em relação ao lugar em que elas são produzidas, quanto sobre seus autores que, na busca antecipada pela sonhada liberdade, encontram nas linhas preenchidas, pelas letras inseguras que predominam e marcam os poucos anos de presença na escola, o refúgio para diminuir distâncias, saudades, bem como, manter o vínculo com aqueles que estão do outro lado do muro.

É na prisão que centenas de cartas aparentemente iguais, vão registrando histórias de vidas aglomeradas e confinadas atrás de grades e muros que tentam não perder o contato com o “mundão” e muito menos se separar desse outro tempo que é o da vida “lá fora”, ou seja, do frenesi da instantaneidade tecnológica, enquanto os ponteiros vagarosos do relógio da prisão giram em um ritmo avesso ao tempo contemporâneo.

Cartas que somente vão ao encontro dos seus destinatários após passarem pelo olhar do censor, pois é em nome da segurança que “todas” as missivas são averiguadas, amparada na justificativa de evitar que o presidiário continue utilizando-se desse instrumento de comunicação, para atuar ilicitamente na sociedade, mesmo estando em situação de pena privativa de liberdade.

Por isso, o objetivo desse empreendimento acadêmico é refletir sobre o controle de tais cartas, a partir da seguinte pergunta-problema: a prática de violabilidade da correspondência escrita por presidiários constitui (ou não) uma violação dos direitos humanos pelo Estado?

A busca pela resposta seguirá um percurso teórico sobre as concepções históricas dos direitos humanos – Alapanian (2014), Duarte (2014) e Tonet (2014) – e, posteriormente, o tema será direcionado para as políticas públicas dos direitos humanos nas prisões brasileiras, a partir da instauração do regime democrático, em 1985. Priorizaremos as prisões paranaenses, especificadamente, a Casa de Custódia de Maringá (CCM), por ser o nosso lugar de atuação.

Além dos autores acima também identificaremos as legislações internacionais e nacionais sobre a inviolabilidade da correspondência e em seguida, apresentaremos a legislação específica que autoriza a violabilidade da correspondência do presidiário, seguida de uma análise que vislumbra constatar se, nessa prática, ocorre violação dos direitos humanos da pessoa presa.

Na prática cotidiana da prisão, o arcaico instrumento de comunicação, através da correspondência manuscrita, significa o meio legal para estabelecer e manter vínculos com o mundo exterior, mesmo diante de um mundo virtual em que a tecnologia permite o contato com o outro, em qualquer lugar do mundo e em tempo real. Uma realidade que também faz parte, do mundo da prisão e suas celas, ocultamente, devassáveis por celulares. Portanto, enviar uma carta de dentro da prisão é como aderir à regra de um jogo com duas estratégias: a clandestina ou a oficial.

Ao utilizar-se da primeira estratégia, o preso convoca uma rede de personagens para burlar a cultura da censura, através de pessoas que o auxiliarão, no envio da sua missiva, até o destinatário; a segunda é utilizada quando não se tem pressa nem problemas e significa mergulhar na cansada rotina de escrever, envelopar, enviar a carta e ficar aguardando a resposta, sempre na incerteza se a mesma vai chegar ao seu destinatário. Independente da forma utilizada para despachar a carta, destacamos que cada uma significa, dentro do contexto prisional, um instrumento para
 
Repensar a história de homens e mulheres vencidos na história cotidiana do mundo: os perseguidos, os desiguais, os explorados, os banidos, os estrangeiros, os pobres, ou seja, a grande e transbordante maioria de seres humanos. Todos sem voz e sem rosto (PONCIANO, 2007, p. 133).

É nesta realidade que mergulharemos a partir de agora, considerando a temática da garantia dos direitos humanos, enquanto direito que também está assegurado aos que estão na prisão cumprindo suas penas, como forma jurídica de redimir seu erro de conduta (crime) perante a sociedade.

2. CONCEPÇÕES TEÓRICAS SOBRE OS DIREITOS HUMANOS

Segundo Alapanian (2014) os princípios que norteiam a teoria dos direitos humanos começam a ser pensado a partir dos filósofos gregos que os compreendiam como uma lei originada dos deuses. Posteriormente, o filósofo Heráclito o ressignifica como uma lei natural regida por uma justiça imutável, mas capaz de subdividir as classes, deixando à margem alguns segmentos.

Com a decadência da cultura grega, o império romano começa a prevalecer subdividindo o direito em: juscivile (aplicável aos cidadãos romanos) e jusgentium aplicado a outros povos (estrangeiros/bárbaros). A autora afirma que, nesse período, o direito natural enfraquece, mas volta a ser discutido na Idade Média, atrelado ao pecado original, justificando a condução do homem à escravidão e ao trabalho, através das ideias de Tomás de Aquino, na obra Summa Theologica que defendia a origem das leis a partir da vontade divina.

Concepção que caiu em desuso a partir das ideias de Descartes que, além de introduzir a racionalidade científica, marcou também a passagem da Idade Média para a Modernidade, por volta do século XVI. Este pensador influenciou o pensamento de outros filósofos como Hobbes que via o homem como um ser egoísta e, por isso, precisava viver sob o regimento de um contrato para que não matassem uns aos outros. Ou seja, estava lançada a ideia de um poder soberano central capaz de impor limites, posteriormente aprofundada pelos iluministas, no século XVIII que defendiam a criação de um Estado para defender “imparcialmente” os conflitos e garantir o direito à propriedade privada.

Segundo a autora, o momento político, social e econômico daquele tempo provocou a necessidade de regulamentar essa gama de direitos por um contrato social capaz de preservar a liberdade e a igualdade entre “todos” os seres humanos, originando nos 17 artigos que compõem o marco inicial de uma regulamentação de direitos. Surge, então, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em 1789, em plena Revolução Francesa. A burguesia europeia do século XVIII influenciada pelo Iluminismo intensificou suas criticas aos governantes absolutistas e buscando o apoio das camadas populares, promoveram a ideia de que o principal objetivo das lutas populares era a conquista do direito à liberdade individual. Para a manutenção da liberdade e do individualismo, defendiam a livre concorrência econômica e o consentimento politico.

A classe burguesa estabelecia os fundamentos do liberalismo, um novo modo de pensar que se difundiu pela Europa a partir do século XVIII, enquanto modelo econômico baseado em um tripé que buscava garantir a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. Dessa forma a liberdade era entendida como a não interferência da autoridade na esfera dos interesses privados, a Igualdade seria a ausência de privilégios e a fraternidade seria alcançada quando houvesse uma política solidária, resultando em uma comunidade com indivíduos livres e iguais. Na teoria, a Revolução Francesa significou a garantia de liberdade, igualdade e fraternidade para o povo francês, mas na prática, essa trilogia somente seria estendida a alguns homens – os considerados cidadãos – enquanto outros segmentos – os não cidadãos – como mulheres, crianças, idosos, escravos, pobres, etc., continuariam marginalizados e, portanto, dependentes de uma política de proteção de Direitos Humanos, diante do novo sistema que emergia, tendo como foco de ação política e econômica a divisão de classes em donos dos meios de produção e dos lucros (a classe dominante) e os donos das forças de trabalho e de um salário equivalente a sua manutenção, ou seja, para continuar vendendo sua força de trabalho (a classe dominada).

Por isso, a necessidade de elaborar uma cartilha denominada Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão que, segundo Duarte (2014), foi promulgada em agosto de 1789, como sinônimo do desejo de mudança da população excluída. Incluir-se, era o grande anseio da população faminta parisiense e também dos membros de uma pequena elite que despontava e não suportavam mais pagar pesados impostos para manter a luxúria dos castelos e das igrejas. Um acontecimento em que a burguesia europeia convocou o povo, reprimindo-o nas revoluções seguintes, ou seja, na prática foi um acontecimento social, político e econômico para uma classe específica: a burguesa que precisava de liberdade para ampliar seus negócios.

A intenção tripla em agilizar os negócios, aumentar os lucros e explorar a força do trabalho, mediante a paga de um salário que mantivesse minimamente os trabalhadores em condições de servir aos donos dos meios de produção, era planejada pelos representantes da classe burguesa. Ou seja, a liberdade defendida na Revolução Francesa não significou igualdade para todos e o sonho de uma sociedade composta por uma única classe foi desfeita pela supremacia da burguesia que tinha liberdade para explorar a classe trabalhadora tão necessária para o funcionamento do modo de produção capitalista e tão desigual para conquistar direitos básicos essenciais defendidos, mas não cumpridos, no primeiro artigo da Declaração, que assegurava a todos a condição de nascerem e permanecerem livres e iguais em direitos.

O que foi silenciado no referido artigo e em todas as ações daquela época (e ainda hoje) é que a liberdade e a igualdade seriam uma prática efetivada somente para atender uma classe sedenta por lucro, dominação e poder: a classe burguesa capitalista, justificando o porquê dos direitos humanos serem motivos permanentes e atuais de lutas e reivindicações constantes[3].

Para Tonet (2002), foram estas relações antagônicas entre os seres humanos que reconfiguraram as leis para manter e garantir a desigualdade, amparada no próprio Estado e seus núcleos político, jurídico, ideológico e administrativo. Desse modo, o direito se tornou o ponto crucial no controle dessas divisões sociais em classes, enquanto agente regulador dessa desigualdade sem pretensão de resolvê-la, mas de continuar reproduzindo pela via da própria lei.

Para o autor, essa ideia que justifica a premissa de que se o direito fosse para defender a todos, não haveria necessidade de se lutar pelo cumprimento dos direitos humanos criados em um contexto histórico e social de extrema violação e, portanto, capaz de justificar as lutas seculares da população por garantias de direitos fundamentais para uma vida digna.

Desse modo, a luta por direitos humanos é constante e as conquistas são demoradas e pequenas, pois a mesma está alicerçada no aparato burguês da propriedade privada. Por isso, o autor sugere a sempre lutar por eles, mas de uma forma contrária, ou seja, a luta deve ser por uma revolução anticapitalista, e não pela garantia dos direitos humanos.

Consideramos as ideias do autor coerentes e justificáveis, mas ainda impraticáveis no atual contexto capitalista neoliberal que produz, diuturnamente, o aumento desenfreado da pobreza no mundo inteiro e a concentração das riquezas em pequenos grupos. Diante das reflexões apresentadas, surge uma questão: o que fazer com uma grande parcela da população que o sistema não consegue absorver, vindo a se tornar os restos que insistem em ser incluídos, entre os quais citamos idosos, negros, deficientes, mulheres, homossexuais, presidiários, etc.?

Dentro dos objetivos propostos para este trabalho, nosso foco se concentra no funcionamento da instituição prisional, bem como, na prática, amparada legalmente, que o preso tem em se comunicar com o mundo extramuros através de cartas manuscritas, que passaremos a questionar, a partir de uma reflexão sobre os direitos humanos no sistema prisional.

3. EM TEMPOS DE DEMOCRACIA: DIREITOS HUMANOS NAS PRISÕES

A sociedade do modo de produção capitalista se constitui por classes dominadas e dominantes que lutam entre si, através de uma engrenagem que, para Althusser (2008) é realizada por instituições subdivididas em Aparelho Repressor de Estado (ARE) e Aparelhos Ideológicos de Estado (AIEs). O ARE, representado pelas forças armadas, corpos especializados de repressão, tribunais, magistraturas e as prisões funciona tendo como respaldo a violência física. Os AIEs, representados pela escola, igreja, partido político, sindicato, família, etc., funcionam predominantemente pela ideologia, destituída, ao menos visivelmente, de atitudes repressoras[4].

O aparelho repressor prisional, enquanto lugar de excelência para punir aqueles que não se adequaram aos ensinamentos dos AIEs, é para Foucault (2006) o marco de um poder de julgamento que substituiu o suplício em praça pública, no início do século XX, através da perda total ou parcial da liberdade de ir e vir do indivíduo que cometeu um crime e que, por conta disso, precisará reparar seu erro perante a sociedade, em um lugar específico para esse fim: a prisão.

A instituição prisional se define como lugar reservado para grupos sociais em situação de vulnerabilidade, resultante da desregulamentação econômica e da redução dos esquemas de proteção social, segundo Rocha (2014). Afirmativa que justifica a existência das prisões, enquanto instrumento de controle de categorias sociais desfavorecidas, estereotipadas e alocadas em territórios reservados para elas: homens, negros, profissão indefinida, baixo nível de escolaridade e habitados em guetos periféricos das zonas urbanas.

No contexto brasileiro, a história das prisões é marcada por maus-tratos, rebeliões e motins que estimularam a formulação de um conjunto de proposições, sob a nomenclatura de “direitos humanos do preso”, para atender, especificamente, seres humanos em condição de presidiário, enquanto tentativa para melhorar as condições das prisões e o projeto de ressocialização da população carcerária, enquanto componente para diluir a premissa foucaultiana de que a prisão é o lugar de transformação, ou seja, o indivíduo sai pior do que entrou.

Em conformidade à Constituição Federal de 1988 (CF/88), os Direitos Humanos são assegurados a “todos”, considerando a especificidade situacional de cada grupo e, diante dessa premissa as pessoas encarceradas também são asseguradas a condições dignas de vida na prisão (alimentação, higiene, vestimentas, atendimento médio, odontológico, psicológico e, entre outros, o de manter seu vínculo social e afetivo com parentes que estão em pleno gozo de sua liberdade de ir e vir). Estamos nos referindo aos Direitos humanos tão debatidos desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1789, mas apagados na falta promovida pelo Estado e, quando o tema é direcionado para o sistema prisional, a expressão passa por um processo de ridicularização, mediante alteração para direitos dos manos. A expressão é ressignificada pelos servidores do sistema prisional que, em sua maioria, estão afetados pela cultura da vingança e não aceitam que qualquer direito seja concedido ao preso.

Salientamos que as afirmações apresentadas até o momento não menosprezam os avanços já ocorridos sobre a política dos Direitos Humanos no Brasil, tal qual o lançamento do Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH), em 1996, atualizado em 2002. Segundo Salla (2003), este acontecimento significou avanços no conjunto de propostas governamentais para o sistema prisional, como o aumento da participação da comunidade, a instituição de penas alternativas, formação direcionada dos agentes penitenciários vislumbrando tratamento humanizado ao preso.

Há políticas públicas preocupadas com o sistema prisional, mas o problema se pauta na efetivação das mesmas que, para o autor, não conseguem agregar seus valores aos costumes cotidianos e culturais das instituições de controle social, capazes de promoverem uma reversão nas práticas de violações de direitos humanos dos presos.
Por isso, a prisão é o lugar oficial para aqueles que praticam atos ilícitos e, apesar das suas mazelas e seu fracasso teoricamente comprovados e adjetivado como lugar caro demais, para posteriormente devolver o indivíduo à sociedade pior do que entrou[5], conforme já elencamos, através de Foucault (2006), ela continua sendo o lugar de excelência, bem como, de vingança social àqueles considerados perigosos e, portanto, desabilitado para o convívio social.

No Brasil, o problema relacionado às prisões perdura ao longo dos séculos, pois segundo Pinheiro (2002), mesmo com a transição política e a condição de Estado Democrático de Direito, os governos civis não estão conseguindo impedir que resquícios do legado ditatorial permaneçam em funcionamento nas práticas da instituição prisional, apesar da promulgação da CF/88 e sua abrangente “carta de direitos” e o marco de um Brasil que passa a ser governado por um sistema político de democracia.

O autor salienta ainda que apesar do sistema formalmente democrático, a polícia continua com a mesma organização estrutural que fora definida durante a ditadura, mediante uma estrutura corporativa que tende a ver o Estado de Direito como obstáculo, em vez de garantia efetiva da segurança pública. Apesar de a abertura política ter facilitado a materialização das lutas e das resistências populares, no dizer de Pinheiro (1991), a violência legal e ilegal no Brasil, bem como sua impunidade, continuam mesmo depois da transição política.

Considerando o sistema prisional já sob o prenúncio de ares democráticos, Teixeira (2009), cita a reforma do Código Penal e da Lei de Execuções Penais, promulgada em 1984 (LEP/84) como o começo de uma mudança oficializada em relação ao tratamento direcionado aos presos, mas que, na prática ainda há uma forte resistência em aplicar alguns princípios capazes de garantir tais direitos, haja vista, em sua maioria são pobres e negros que sempre permaneceram sob um paralelo e ininterrupto regime de exceção, mesmo diante da garantia de que “todos são iguais perante a lei” (BRASIL, 1988).

A inaplicabilidade das leis para grupos determinados resultam em um sistema prisional brasileiro condenado ao caos da superlotação, rebeliões, torturas e, consequentemente, refúgio para a atuação do crime organizado. Uma realidade que as prisões do Estado do Paraná, não conseguem escapar, tal como ocorre na Casa de Custódia de Maringá, com seus dilemas e desafios.

No Paraná, o sistema prisional se apresenta com suas especificidades, conforme as injunções do grupo que lidera politicamente o Estado. Entretanto, algumas características não foge à regra nacional como precariedade física, superlotação, demora na tramitação dos processos e, sobretudo, a permanência do espectro autoritário da ditadura militar que, mesmo após três décadas, ainda ronda fortemente por essas instituições permeadas pela falta de estrutura física, material básico de trabalho, equipamentos, serviços de manutenção, pessoal quantitativo e qualitativo para atender as novas demandas, plano de carreira para os servidores, competência organizacional para administrar o crime organizado que está controlando o “dentro” e o “fora” das prisões.

Um fato que complica a rotina dos gestores das prisões construídas para abrigar presos provisoriamente, ou seja, até o julgamento, mas que acabam cumprindo a pena integralmente em um lugar impróprio e de estrutura precária, planejada para ser de baixo custo. Realidade vivida diuturnamente na CCM, inaugurada em 09 de junho de 2008 como Centro de Detenção Provisória de Maringá (CDPM), durante o governo de Roberto Requião (PMDB). Arquitetonicamente planejada para ser um estabelecimento penal de segurança máxima para presos provisórios do sexo masculino[6], foi a 11ª unidade penal inaugurada, resultante de um pacote de políticas públicas com o objetivo de desafogar (“acabar” com a superlotação) o contingente das delegacias, principalmente no interior do Estado.

Seus problemas se iniciam já nos primeiros dias de funcionamento, ao ter um projeto arquitetônico para custodiar temporariamente pessoas presas por um tempo limite de até 4 meses. Um lugar em que a prática desvela outra história mediante a coexistência de indivíduos heterogêneos presos à espera da condenação e outros já condenados. Uma miscigenação de homens presos em regimes diferenciados que alterou a nomenclatura para Casa de Custódia de Maringá (CCM).

O objetivo do Estado fora “resolver” o problema da superlotação providenciando obras de baixo custo que, acrescido da falta de fiscalização do Estado no controle da qualidade das obras públicas, resultou em uma construção precária e fragilizada, no quesito segurança, pois os presos planejam suas fugas (e fogem), através de túneis facilmente construídos no piso ou na laje.

Essa edificação com 8,406 mil m2, com capacidade para 912 presos a serem distribuídos nas 170 celas das 03 galerias, já passou por três rebeliões. A primeira aconteceu em março de 2009, antes do primeiro aniversário de sua inauguração, e tinha como reivindicação a ampliação do banho de sol para 2 horas diárias e o direito a visita íntima com suas companheiras.

A segunda ocorreu em setembro de 2011, resultando na destruição parcial da estrutura física, bem como dos equipamentos de informática, arquivos e móveis de escritório. Mantendo um funcionário refém, às 19 horas de rebelião foram para reclamar da demora no andamento dos processos, dos maus tratos e da comida (rango azedo). Além disso, reivindicavam também a transferência de 10 presos, já condenados, para a capital do Estado, lugar em que residem as respectivas famílias.

A terceira ocorreu em dezembro de 2014, fazendo parte de um conjunto de rebeliões em série ocorrido em todo o Estado. Apesar da pouca depredação física, teve uma duração prolongada por 44 horas e, inicialmente, com 7 reféns sob o poder dos rebelados que ficaram contidos no bloco 3 da unidade penal. Entre as reivindicações estava a transferência de presos para outras unidades penais, atendimento médico, jurídico e melhora na alimentação.

Por conta das fugas e rebeliões, a CCM funciona como um lugar de tensão permanente e é nesse ambiente que os servidores vão para mais um plantão em que as rachaduras, o bolor, o mofo nas paredes e as goteiras em dia de chuva se diluem na prisão recém-construída, mas com sinais de uma obsolescência que implora reconstrução. E nessa rotina, o agente penitenciário mortificado pela falta de perspectiva, deixa passar mais um dia, enquanto espera a folga, as férias e a aposentadoria.

O preso, mortificado socialmente, aguarda a liberdade – seja pela fuga ou pela “porta da frente”[7] – e, enquanto ela não “canta”[8] as cartas manuscritas sob as condições coercitivas de um ambiente prisional são instrumentos legais para ele continuar tentando fazer parte do tecido social.

4. A (IN)VIOLABILIDADE DA CORRESPONDÊNCIA NALEGISLAÇÃO

De acordo com os preceitos teóricos de Leite Junior (2009), um dos acontecimentos mais importantes, na luta pela democracia, foi o movimento denominado “Diretas-Já”, em 1984, com milhares de pessoas indo às ruas reivindicar mudança do regime político.

Movimento que concretizou uma nova fase histórica, pois mesmo regido pelos costumes militares, foi neste cenário que ocorreu a promulgação de um novo texto constitucional, representando a concretização do embrionário período democrático, promulgado em 5 de outubro de 1988. A Constituição de 88 trouxe ao povo brasileiro a esperança de uma sociedade que priorizasse o respeito pleno aos Direitos Humanos, conforme descrito no Artigo (Art.) 5º, Título II (Dos direitos e garantias fundamentais), Capítulo I (Dos direitos e deveres individuais e coletivos).

É esta parte da Constituição Cidadã que nos interessa, pois é nela que está assegurada a garantia da inviolabilidade da correspondência, conforme esclarece o Art. 5º:
 
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XII - É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; [...] (BRASIL,1988, p. 13).
Para contextualizarmos a questão dentro dos objetivos deste trabalho, elencamos o cenário internacional, onde a inviolabilidade da correspondência também faz parte da produção de Leis, Códigos, Tratados, etc. Trata-se de uma prerrogativa que se inicia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1789. Neste documento, apesar de não haver nenhum registro sobre a temática, percebemos que há um prenúncio que se efetiva nas legislações posteriores, conforme se observa no Art. 11 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei” (BRASIL, [1789] 2015, p. 2).
Transpomos para o Século XX e em um contexto geográfico do continente americano e elencamos os seguintes documentos: Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, através do Art. 12: “Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques” (BRASIL, 2009, p.12), a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades fundamentais, de 1950, através do art. 8: “Direito ao respeito pela vida privada e familiar: qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência” (BRASIL, [1950] 2015, p. 11).

Seguindo a apresentação da legislação, elencamos o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Político, de 1966 [1976], através do Art. 17: “Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais às suas honra e reputação”, (BRASIL, 1992, p. 07), Pacto de San José da Costa Rica, de 1969 [1978], através do art. 11: “Proteção da honra e da dignidade. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação” (BRASIL, [1969] 2015, p. 5).

Apesar de haver outros tantos marcos importantes para garantir a inviolabilidade da correspondência, para o nosso propósito os registros supracitados são suficientes para contextualizar e sustentar a problematização da proposta. Para tanto, retomamos nossa discussão, através da apresentação das principais leis protetivas (e suas ressalvas) dentro do tema proposto, conforme está escrito no Código Penal, Lei nº 4.898/65 e Lei 6.538/78, respectivamente:
 
Art. 151 – Devassar indevidamente o conteudo de correspondência fechada, dirigida a outrem:
[...]
Sonegação ou destruição de correspondência
1° Na mesma pena incorre:
I – quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada e, no todo ou em parte, a sonega ou destroe;
[...]
Divulgação de segredo
Art. 153 – Divulgar alguem, sem justa causa, conteudo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem:
[...] (BRASIL, [1940] 2015, p 37).
Observa-se também que Lei 4.898 de 1965 em seu Art. 3º, letra “c” diz: “constitui abuso de autoridade qualquer atentado: [...] c) ao sigilo da correspondência” (BRASIL, [1965] 2015, p. 1).

A lei 6.538 de 1978 em seu Art. 40 determina que:
 
Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada dirigida a outrem: [...]
Sonegação ou destruição de correspondência.
§ 1º - Incorre nas mesmas penas quem se apossar indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada, para sonegá-la ou destruí-la, no todo ou em parte. [...] (BRASIL, [1978] 2015, p. 1).

Salientamos que há leis e documentos e eventos específicos para atender a população carcerária, como o Art. 37 do Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o tratamento dos Delinquentes, de 1955: “Os reclusos devem ser autorizados, sob a necessária supervisão, a comunicar periodicamente com as suas famílias e com amigos de boa reputação, quer por correspondência quer através de visitas” (BRASIL, [1955] 2015).

O princípio 19 do Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer forma de Detenção ou Prisão, de 1988, apresenta a seguinte afirmativa:
 
a pessoa detida ou presa tem o direito de receber visitas, nomeadamente dos membros de sua família, e de se corresponder, nomeadamente com eles, e deve dispor de oportunidades adequadas para comunicar com o mundo exterior sem prejuízo das condições e restrições razoáveis, previstas por lei ou por regulamento adotado nos termos da lei (BRASIL, [1988] 2015).

Pela apresentação das legislações supracitadas, percebemos que a inviolabilidade da correspondência é um direito humano juridicamente assegurado. Entretanto, há ressalvas diante de estado de defesa e de sítio, asseguradas pelos Art. 136 e 139 da CF/88, respectivamente, que suspendem o sigilo e a inviolabilidade da correspondência, por motivos de defesa nacional e ordem pública.

A garantia assegurada à correspondência também tem suas limitações, deixando lacunas para ser violada, conforme as ressalvas registradas que confirmam a inexistência de um direito absoluto, Conforme a Lei 6.538/78, Art. 40, dos serviços postais: “O ato de devassar a correspondência somente se constitui crime se for considerado ação indevida e se a correspondência estiver fechada” (BRASIL, [1978] 2015, p.1).

Conforme elencamos, as lacunas produzidas nas palavras autoriza aquele que está no front da prática, ou seja, na leitura censória das cartas enviadas pelos presidiários, a violar o seu direito humano de poder se corresponder com o mundo extramuros, pois ficam à mercê de sua interpretação, quais são os modos de escrita considerados como abuso de liberdade, se a carta estiver aberta não se constitui um ato de devassamento indevido (lembrando que as cartas dos presos chegam aberta até o/a servidor/a responsável pela sua leitura), não se especifica que tipo de supervisão ou restrição deve ser adotada ao fazer a leitura censória da carta.

As brechas inerentes da letra da lei permitem atitudes violadoras dos direitos humanos do preso que fica totalmente submetido à subjetividade interpretativa de cada leitor, indo ao desencontro da premissa de que “nenhuma pessoa humana pode ser tratada como um simples meio da vontade de outra pessoa, pois cada pessoa tem um fim em si mesmo” (ALAPANIAN, 2014, p. 46).

Pelas considerações teóricas já elencadas, notamos que há um desmantelamento (ou mesmo uma resistência) por parte daqueles que prontificaram, mediante concurso público, a efetivar o direito de se corresponder do preso, dificultando, amparado nos “furos” legais, bem como, na cultura de vingança instaurada no âmbito prisional, que a carta siga os trâmites normais, segundo a rotina da instituição prisional.

Diante da prática da escrita de cartas por presidiários, elencamos um rol de legislação específica sobre a temática que garante ao preso, o seu contato com a sociedade de homens “livres”, dentro dos limites de que não há nenhum direito absoluto. Por isso, o fato de estar lidando com pessoas em situação de pena privativa de liberdade, ou seja, com o seu direito de ir e vir temporariamente suspenso em virtude de suas práticas ilícitas, tais cartas são submetidas a uma leitura censória autorizada, mas respaldada em um bem maior: o da “segurança” da Unidade Penal e da sociedade em geral.

É neste cenário que apresentamos uma legislação específica que assegura a escrita da correspondência pelo presidiário, conforme disposto no art. 41 da LEP n° 7.210/84: “Constituem direitos do preso: [...] XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes” (BRASIL, [1984] 2015, p.30), o Art. 33 da Resolução 14, de 1994 que fixa as regras mínimas para o tratamento de presos no Brasil: “O preso estará autorizado a comunicar-se periodicamente, sob vigilância, com sua família, parentes, amigos ou instituições idôneas, por correspondência ou por meio de visitas” (BRASIL, [1994] 2015, p. 5), o Art. 47 do Estatuto Penitenciário do Paraná, de 1995: “Em caso de perigo para ordem ou a segurança do estabelecimento, a autoridade competente poderá restringir a correspondência dos presos ou dos internados, respeitados os seus direitos” (PARANÁ, [1995] 2015, p. 11).

No Estado do Paranaense a questão sobre a inviolabilidade da correspondência é pouco abordada na legislação existente e, embora a Constituição do Estado do Paraná de 1989 não traga nenhuma referência sobre, o tema é abordado no Estatuto Penitenciário do Paraná, promulgado pelo Decreto Estadual nº 1.276/95:

Em 2010, o Departamento Penitenciário do Estado do Paraná (DEPEN/PR) lançou a Portaria nº 245/10 que regulamenta a escrita da correspondência nas suas prisões. Os artigos que a compõem apresentam as seguintes regras:
 
O coordenador-Geral do Departamento Penitenciário do Estado do Paraná, no uso das atribuições que lhe são conferidas pelo artigo 4º do Regimento Interno do DEPEN, aprovado pela Resolução nº 121 – SEJU, de 05 de maio de 1995. Considerando que o Departamento Penitenciário também exerce função normativa e, visando regulamentar os procedimentos nas Unidades Penais, notadamente o disposto no artigo 41, inciso XV, da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984.
Resolve:
Art. 1º A comunicação do preso com seus familiares e amigos, através da correspondência escrita, fica limitada à emissão de 02 (duas) cartas por mês.
Art. 2º. Cada carta escrita pelo preso poderá conter no máximo duas folhas, com a utilização de canetas esferográficas nas cores azul ou vermelha.
Art. 3º. O recolhimento das cartas, por parte dos agentes penitenciários, dar-se-á mediante regulamentação de cada Estabelecimento Penal, através de ato do seu Diretor Geral.
Art. 4º. Fica terminantemente proibida a emissão de cartas, por parte dos presos, para familiares e amigos que se encontrem cumprindo pena em Estabelecimento Penal do Paraná, Cadeia Pública, Delegacias de Polícia e/ou Especializadas.
[...]
(PARANÁ, 2010).

Em 2011, o DEPEN/PR lançou o caderno de práticas de segurança nas unidades penais do Paraná, com o objetivo de regulamentar e estabelecer o mesmo procedimento de ação, nas unidades de todo o Estado. As cartas produzidas por presidiários fizeram parte das suas regras, conforme elencamos abaixo:
 
1.6. Definição, composição e atribuições da Divisão de Segurança e Disciplina
1.6.3 Atribuições da Divisão de Segurança e Disciplina conforme o regimento interno das unidades penais
Da Seção de Portaria
À Seção de Portaria compete:
[...]
f) o exame e a censura da correspondência, livros, revistas, publicações e objetos destinados aos internos e expedidos pelos mesmos, enviando às seções responsáveis pela sua distribuição;
g) a manutenção de registro das correspondências recebidas e expedidas, para efeito de diligências preventivas de fugas ou evasões;
h) o recolhimento à Seção de Registro e Movimentação, dos valores e objetos
de valor recebidos nas correspondências, para seu encaminhamento de acordo com as normas internas em vigor;
[...]
(SANTOS, 2011, p. 25).

4.3. Atribuições do agente penitenciário em postos de serviço específicos
4.3.2. Galeria ou alojamento
[...]
o) recolher e encaminhar as correspondências dos presos ao setor competente;
p) entregar correspondências aos presos conferindo nome do emitente e destinatário, e solicitando assinatura do mesmo em recibo próprio;
[...]
(SANTOS, 2011, p. 48).

4.3.8 Setor de pertences e triagem de correspondências
Cabem ao agente penitenciário as seguintes atribuições:
a) buscar, nas agências dos correios, se necessário, as cartas e correspondências;
[...]
c) vistoriar as correspondências e os materiais, submetendo-os primeiramente, se disponível na unidade, sempre à inspeção eletrônica (Rapiscan);
d) proceder à triagem das correspondências;
e) comunicar, por escrito, à chefia imediata, qualquer suspeita (conteúdo do
envelope, escrita etc.) verificada na correspondência;
f) reter os excedentes de correspondências e/ou materiais não permitidos;
g) efetuar o controle:
[...]
h) entregar, se determinado pela chefia imediata, os materiais e cartas aos presos, solicitando aos mesmos que assinem o recibo;
i) devolver, se necessário, nas agências dos correios, as correspondências e/ou encomendas não entregues aos presos.
[...]
(SANTOS, 2011, p. 53).

A CCM, de um modo geral, segue as normas ditadas pelo Estado, mas há algumas especificidades que são consideradas a partir da realidade particular da instituição, como, por exemplo, a grande quantidade de presos e, por conseguinte, o uma grande demanda de cartas manuscritas. Dentre as regras sugeridas para gerir a produção de cartas e o seu despacho, há de se considerar as seguintes: a) as cartas são recolhidas sempre nas segundas-feiras b) presidiário somente pode escrever uma carta por semana; c) a cor da caneta é somente azul ou preta; d) no envelope deve ser conter apenas uma folha e e) não pode escrever nas laterais da folha.

Analisando as legislações descritas acima, quanto ao quesito de cumprimento ou violação dos direitos humanos do preso, observamos que os mesmos possuem fronteiras delimitadas, pois o contato com o mundo dos libertos, não podem afetar a moral e os bons costumes, conforme descrito na LEP/84. Ou seja, fica vago o que pode (ou não) ser considerado amoral e que tipo de atitude se encaixa como maus costumes. Tudo vai depender da subjetividade do servidor que vai executar a leitura.

O direito de escrever possui fronteiras limitadas, conforme as regras mínimas que impõe a prática da vigilância, bem como, a possibilidade de suspensão ou restrição pelo diretor do estabelecimento prisional. Veja que o direito do sujeito presidiário não segue uma perenidade absoluta, mas está sempre posto em condições que tanto poderá ser mantido; quanto poderá ser suspenso.

No Art. 33, ao dizer que o preso está autorizado a se comunicar periodicamente com seus familiares, amigos e instituições, há duas ressalvas que chamam a atenção: sob vigilância e idôneas. Ou seja, a legislação garante um direito e exclui outro, restringindo a liberdade para do direito de se comunicar, impondo limites, através da prática que se efetiva sob o olhar do vigia que vai definir singularmente o que vem a ser idoneidade.

Ao fazer uma varredura sobre o que há, em termos de legislação, sobre a inviolabilidade no Estado do Paraná e, especificamente, na CCM, não encontramos algo que difere do que já foi exposto até aqui, pois as discrepâncias fazem parte desse conjunto de legislações que dizem, contradizem e desdizem, pela ambiguidade da língua, tal como averiguamos no Estatuto Penitenciário do nosso Estado que permite ao gestor prisional restringir a correspondência dos presos, caso seja detectado situação de perigo para a ordem ou a segurança da instituição e sem desrespeitar seus direitos.

Mesmo havendo um documento elaborado pelo Estado que controla a escrita das cartas, cada unidade penal elabora seus critérios, amparada no Art. 3º da Portaria nº 245/10 que faz a seguinte regulamentação: “o recolhimento das cartas, por parte dos agentes penitenciários, dar-se-á mediante regulamentação de cada Estabelecimento Penal, através de ato do seu Diretor Geral”.

Em relação à CCM, como o diretor da unidade tem autonomia para determinar as regras locais, notamos discrepâncias em relação ao que o próprio Estado determina: uma carta semanal, ao invés de duas mensais; as cores das canetas são azul ou preta, ao invés de azul ou vermelha.

Retomando o que já foi mencionado, a apresentação da legislação não deixa de ser um norte a ser seguido pelos gestores das penitenciárias, pois no momento de oficializar uma resposta, ou mesmo, durante os cursos de formação ou aperfeiçoamento de servidores, o que conta é o que está regulamentado nos documentos oficiais.

Percebemos que o direito de se corresponder com o mundo exterior tem suas limitações amparadas em um percurso que determina o tipo de assunto que deve permear essa escrita, acompanhado da possibilidade de sua interrupção, pela sistematicidade da própria legislação.

Entramos aqui em uma questão delicada, pois o preso tem ciência de que sua carta passará por averiguação, ou seja, ele escreve mediado por essa censura e, por isso, seleciona o assunto, o modo como vai escrever e, sobretudo, o seu destinatário que, geralmente, são familiares e amigos íntimos.

As prisões, com suas celas devassáveis por celulares e pelas cartas que saem, pela via clandestina, desafiam a ordem, a censura e a norma, através da escrita de assuntos que, certamente não se poderia ser escrito, caso essa carta seguisse pela via oficial.

No entanto, a rotina segue outra cartilha, a dos códigos segundos que permeia a prática funcional de um estabelecimento em que se diluem as fronteiras entre o legal e o ilegal. Enquanto o Estado determina o que pode e deve ser feito, a prática vai conduzindo a rotina por outros caminhos: o da ilegalidade marcada por uma relação de forças que vão determinando as regras de um jogo de vale tudo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso percurso foi apresentar a legislação sobre a inviolabilidade da correspondência, bem como, sua violabilidade também assegurada para aqueles que estão detidos que, mesmo tendo o direito de comunicar com o mundo exterior, suas produções manuscritas passam por uma averiguação. A problematização apresentada foi se o ato legal de violar a correspondência de um presidiário se constitui (ou não) uma violação de direitos humanos, haja vista, se trata de um direito fundamental, dentro da concepção legal de um Estado Democrático de Direito.

Há uma legislação que regulamenta o ato de ler (violar) a carta de um presidiário pela instituição prisional, antes que a mesma ser despachada ao seu destinatário, não significa uma violação dos direitos humanos, pois uma vez que o indivíduo está sob a tutela do Estado, em cumprimento de pena e, portanto, a referida prática se constitui como um ato preventivo a novas práticas ilícitas.

No entanto, as “brechas” produzidas pelas palavras e que, por conta disso, autoriza o servidor responsável a ter posturas diversas, de acordo com suas subjetividades, pode se configurar uma violação de direitos humanos.

O que prevalece na dinâmica prisional são critérios corporativos de funcionamento norteados por um repertório de conhecimento acumulado pelos anos de trabalho e que vão se cristalizando na cultura organizacional, deixando em segundo plano o quadro jurídico-normativo que deveria pautar sua rotina. Fato que fez da prisão uma universidade de crimes devido às suas condições que, além da perda da liberdade, pode significar também a perda do direito à vida e a submissão às regras arbitrárias de convivência coletiva.

Em uma rotina em que as teorias destoam das práticas pela falha estruturante do Estado que funcionam para atender às determinações necessárias à manutenção do sistema capitalista e, portanto, estamos lidando com os restos que ele expurgou, sendo, pois, preciso removê-los para outro lugar por serem considerados empecilhos na rotina do cidadão de bem.

Diante de um sistema prisional falido, extremamente caro e que se contrapões ao discurso do Estado com sua velha política, é na violabilidade legal da correspondência do presidiário que a violação dos direitos humanos se efetiva na possibilidade desta carta ser rasgada, jogada no lixo, perder-se na desorganização cotidiana da prisão, ser extraviada ou mesmo ser guardada em uma caixa e de lá nunca sair.

A violação dos direitos humanos está na grande possibilidade desta carta nunca chegar ao seu destinatário.

6. REFERÊNCIAS

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[1] Agente Penitenciária em exercício na Casa de Custódia de Maringá (CCM), Pós-Graduanda em Gestão Pública com habilitação em Direitos Humanos e Cidadania, sob orientação do Prof. Dr. Eronildo José da Silva.
[2] Doutor em Ciências Sociais ela PUC-SP, Mestre em Educação na área de concentração Fundamentos da Educação pela Universidade Estadual de Maringá, licenciado (1996) em História, licenciado e bacharel (2008) em Ciências Sociais por esta mesma instituição. Atualmente é graduando em Serviço Social pela Famma e membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Afro-Brasileiro-NEIAB-UEM.
[3] Não podemos nos esquecer de registrar o Massacre do 29 de abril, enquanto dia que marca a luta dos professores paranaenses, violentados pelo Governo do Estado do Paraná Beto Richa (PSDB), enquanto marco de violação dos seus direitos humanos já adquiridos e retirados pela política econômica neoliberal (tratoraço) richista.
[4] Esta divisão dos dois aparelhos não é fixa: o ARE funciona, maciça e predominantemente, por meio da repressão e secundariamente por meio da ideologia. Já os AIEs funcionam por meio da ideologia, mas, secundariamente de forma atenuada e quase simbólica, por meio da repressão (ALTHUSSER, 2008, p. 112).
[5] As penas alternativas com trabalhos voluntários, regime aberto e com tornozeleira eletrônica ainda são pouco utilizadas no Brasil.
[6] Presos que ainda não foram condenados pela justiça e permanecem em situação de pena privativa de liberdade enquanto aguardam o julgamento pelo crime cometido.
[7] Esse termo é uma gíria falada e escrita pelos presos e significa o cumprimento integral de sua pena, bem como, a chegada do seu alvará de soltura emitido pelo juiz.
[8] Gíria utilizada pelos presos para descrever o momento que o servidor chega até à portinhola da cela a anuncia que chegou seu alvará de soltura.

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